Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

domingo, 29 de julho de 2012

Férias

  
  Acabaram-se as férias de inverno. Logo é hora de acordar e a rotina das manhãs que iniciam-se muito cedo voltará. Três cafés rápidos, a disputa pelo lugar no banheiro, o preparo dos lanches, a última conferida nas mochilas para ver se está tudo ok. A correria para deixá-los em duas escolas diferentes, em pontos distantes da cidade, no horário certo. 

  Passamos as últimas duas semanas mais próximos, ficamos juntos quase que 24 horas dos quinze dias. Rimos muito, fomos ao cinema, comemos porcarias, passeamos, perdemos nosso Zoé ( o cachorro de estimação ), achamos ele no dia seguinte. Tomamos café mais tarde, trabalhei um pouco menos ( tive muito menos tempo para mim). Eles fizeram torta de bolachas com brigadeiro e confetes de açúcar. Retiramos filmes aos montes e assistimos vários juntos. Não vimos Tv.

  Um tempo precioso, de descobertas mútuas. Um tempo único e gratificante. Eles escolheram estar comigo mesmo eu não podendo mudar muito minha rotina. Eles entenderam-me e estiveram presentes. Foram nossas primeiras férias completas juntos. Foram os dias mais simples e mais cheios de importância de que consigo lembrar-me. Singelezas.

  Agora, eles dormem na ansiedade da volta às aulas; eu fico com o sentimento de gratidão por ter conseguido lembrar (mesmo no meio dessa bagunça toda que é a vida de uma mãe que cria os filhos sozinha ) que a qualidade do tempo é muito mais valiosa do que qualquer presente. 

  Triste saber que alguns abrem mão de tamanha preciosidade. Feliz de mim, que em muitos dias chego no trabalho com o cabelo bagunçado e sem maquiagem ( às vezes não dá tempo ), mas sempre dá tempo de vê-los caminhando seguros na direção de um belo futuro.

  E hoje vai ser assim, atrasada, com o cabelo estranho e feliz. Foram férias lindas!

  

  



  

terça-feira, 24 de julho de 2012

Era meu esse rosto

  Só poderia classificar a linguagem de Márcia Tiburi em Era meu esse rosto, como delicadamente enigmática.  É assim que a autora apresenta o universo de um menino de sete anos e sua família, tendo seu avô como figura chave, imersos em um cenário rural e bucólico, permeado por perdas bastante significativas e dolorosas. 

  Quando adulto parte em uma busca solitária e silenciosa, carregando apenas sua máquina fotográfica, tentando montar o que ficou incompleto em sua infância. Por vezes cheguei a pensar que as fotos eram metáforas de imagens guardadas da infância crua, ainda vivas em sua memória.

  O livro é repleto de frases fortes. Cria uma espécie de eco depois de cada parágrafo. Impossível estar imune a esse novo modelo de linguagem, um estilo único e absolutamente marcante. Narrativa generosa. Inesquecível e tocante; delicado. 

  Um livro intenso, para ser lido no inverno; à noite. Um livro para guardar com carinho, junto com as lembranças do nono fazendo cestos de vime, e do pai na poda das parreiras. Um livro com jeito de memória pura e próxima. 

  A passagem ( uma das ) que mais me marcou:

" Flores esfriam na xícara tampada sobre a pia. Chá de margaridas para a secura da pele ou a oleosidade, já  não lembro que me diz minha tia. É com essa água de ácido perfume que ela lavará o rosto antes do passeio ao cemitério ao qual iremos pela borda do asfalto. Ligaremos os dedos mínimos evitando que suem nossas mãos. Ela me pedirá que regue as plantas dos canteiros em torno do cinamomo que escurece com sua sombra a beleza da morte nos túmulos brancos, essa harmonia perfeita entre as figuras de anjos e as lápides de pedra, a clarear a feiura da morte nas cruzes de madeira sem nome, nas flores de plástico, nos túmulos de terra. As estátuas de mármore sempre acordadas cuidarão do sono dos mortos na eternidade conhecida apenas pelas pedras.
  É dezembro ou será abril? É sempre o mesmo frio, mesmo quando faz sol. São sempre as mesmas sombras mesmo quando mudam as luzes. (...) "  - Trecho inicial do nono capítulo.



  


terça-feira, 17 de julho de 2012

A vista turva


Então a sombra o engoliu, ele não era mais ninguém, ainda com o mesmo verde assombroso nos olhos, mas sem habitar sua casca de pele por vezes rachada nas mãos, ou nos calcanhares. Era vazio de algo morno que fosse. Não existia, caminhava sem pegadas, sem um reflexo no espelho velho e marcado. Passava as manhãs de frio e garoa preparando os enxertos, era época da poda. Por entre seus pés imunes à geada passavam os gatos, ele nunca os via. Ele nunca me viu, nem sabe meu nome todo; nunca me chamou. Eu morri com ele antes de nascer. Nunca fomos, seremos só o que já passou, sempre no tempo de antes. Agora não mais. Ele sabe que não levarei flores, jamais trocarei a água dos vasos, vejo os gatos com frio. Algo em mim o lembra do que deve ser esquecido, nunca saberei. Nada de cerimoniais. Seja breve por favor. 

( não esqueça de colocar mais um cobertor. Os mortos sempre sentem mais frio do que os que vivem. )




Dos atrasos



Sentei perto da janela
Na mesa ao lado apenas uma cadeira
Era lá meu o meu lugar
Estava sozinha
Não tive coragem de trocar
Te esperava.


sexta-feira, 13 de julho de 2012

Do esquecimento


No meio do diário de anotações faltou um dia. Cedo ou tarde eles somem, sobrou um espaço depois da foto; como nas viagens longas, sobra uma noite. Desde cedo perdi a contagem do tempo, sou dislexica na sua linguagem, também não entendo seu idioma. Rabiscos de um caderno de folhas brancas e capa parda. Cartas reescritas à lápis muitas vezes, sem envelopes. Sem selos. Nunca serão lidas. Aqui faz frio, ontem ventou. Sempre será verão onde estás agora. Azul. Não sei o que escreverias hoje. Nessa casa que me abriga e não é minha, guardo o caderno, nele cabe tudo que não se vive. É tua morada. Há uma certa beleza nisso e, um pesar. De manhã o  sol é distante da janela do quarto. Um musgo verde cresce perto da velha veneziana. Quem foi que falou em ausências, quando tudo que precisamos é de esquecimento na sua forma mais pura. Quem ousaria lembrar?

Talvez tu nem saibas mais ler.






quarta-feira, 11 de julho de 2012

Librerie "Eterna Cadencia", Buenos Aires


Café em copos de isopor



O resquício de algo doce para caber nesses dias de um cinza molhado vêm dos cafés e seus copos brancos; térmicos e novos. Duráveis; os copos, nunca o café. Nas mesas as pessoas falam sobre uma cidade que me conhece mas me trata como um estranho, conheço essas ruas e becos, conheço suas calçadas e desenhos; não sei como se vive aqui. Casas com portas fechadas para sempre, árvores que não têm sombras, irmãos que não se falam nunca. Talvez tenham perdido a chave; talvez seja dia de não falar nada. O verde cresce pouco entre as pedras quadradas dos pátios sempre limpos e sem flores. É só mais um inverno onde as pessoas caminham rápido entre tudo que lhes parece familiar. Os conhecidos já estão em outros lugares, foram morar onde o novo pode surpreender por entre algum prédio histórico, nas cidades que adormecem um pouco mais tarde; ou perto do mar, onde está quem se foi por sentir frio demais; deixou aqui o sentimento antigo. 

Existe um tempo de trocar as chaves. Existe uma estação em que faz frio e venta no mar. Talvez quem esteja lá lembre do que ficou. Ainda está tudo igual por aqui; mais um café e amasso a carta que te escrevi.




terça-feira, 10 de julho de 2012

O cesto de vime



Depois da curva, no alto do morro, já consigo ver as três casas. A estrada de pó e algum cascalho, nunca conhecerá a dureza do asfalto, é barro algumas vezes. Duas casas com a luz acesa. Uma delas, a do meio, é apagada. Quem vivia lá morreu de doença do fígado. Uma dor amarga o consumiu, nem o chá de losna no final da vida lhe parecia digno. Desistiu. Dorme agora onde é morada de granito cinza, quase um grafite escuro, ao lado da cruz maior que cuida de todos que ali repousam seus corpos e não mais tem relógios. Não faz diferença. Duas fotos amareladas na lápide. Os cônjuges dividem essa casa em paz agora. Sem litígios. E é como se o tempo entrasse em um acordo de cavalheiros com os outros dois. Muito antes sentiram medo, agora não mais. Seus desejos e projetos ficaram mumificados como todos os pertences das duas casa. Não há de se buscar mais oxigênio,  só o necessário. E nem o sol. Basta a luz que entra por entre a cortina. Não abra a janela. As ervas daninha cresceram na horta. As fotos ainda estão nos álbuns em cima do balcão de fórmica azul. Nunca será um amanhã diferente. O dia parou no hoje. Eles só têm o agora. A senilidade lhes é bondosa, os segundos foram apagadas, vivem só de dias arrastados. Não pesa. Quando abro a porta da última casa, o cheiro de minha infância busca o abraço que não mora mais aqui... Sobrou o cinamomo que já não tem mais sombra. É um guardião de uma casa que insisto em visitar sem ter ninguém para me receber. 

( Volto para buscar o cesto de vime que o nono prometeu.)







segunda-feira, 9 de julho de 2012

Da diferença


E ser for loucura?
Não importa, é a única coisa real.
É minha!
Nada é duradouro por aqui...

 ( Noutro dia ouvi que os dias não são todos iguais. )







sábado, 7 de julho de 2012

Sobre o impulso


Ajeitou-se na maior altura que sabia chegar. Fechou os olhos, podia sentir o vento que lhe era uma blusa macia, igual aqueles dias em que andava descalça por sobre as pedras, e a brisa tocava de leve. Olhar estático, dos que lembram; e acabam por perder-se no meio do que fica guardado. Não deveria ser permitido entrar em lugares assim. Poeira antiga. O rosto cru, de pele imaculada, pálido e marcado de tempo e dor. Não haveria de ser isso uma preocupação agora. Vestia branco. Por dentro cinza; cinzas de pura vida sem pausas, senilidades. As mãos com dedos de pontas frias; o frio sempre lhe chegara através dos dedos, logo alcançaria toda extensão de seu ser, ou do que fora. Era inverno; dos dois lados. Inteiro. Mesmo na ausência de percepções maiores, a estação mãe de todas as outras sempre lhe seria bastante clara. Marcas de um frio constante, cortante. Era tarde. Retrocedeu, dois passos para trás. Abriu os olhos. Vertigem. Seu reflexo estava impresso no vidro que por tanto tempo se recusara enxergar, outra cor. Feito de um verde assombroso. Nada que pudesse escrever conseguiria descrever aquela cor, ou toda carga de sentimentalidades que havia dentro daquelas pupilas. Nenhuma carta. Nem mesmo um bilhete. Sem adeus. Sem bagagens. Sem saltos. Nunca mais tiraria os óculos escuros diante de espelho algum.





sexta-feira, 6 de julho de 2012

Placebo e água



Forço os dedos contra a pele, quero despir-me.. Sentir a  nudez escondida atrás dessa casca feita de  lugares ausentes e casacos que não param o vento. Quero a pele longe dos pelos e sem os medos que me seguram. Arrancar o que ficou impresso nas mãos, as marcas que  identificam, queimar o que sobra. Hoje o dia se fez de cores que não existem por depois da ponte, moram nessa nuvem que vem antes. Foi chuva e ainda não passou. Os outros estão na morada de madeira e chão gelado. Não podem sentir. Caminham e os passos podem ser ouvidos aqui nessa sala sem tapete. Fez frio. Não há lenha suficiente para queimar todas as memórias. Fica apagado. Os ponteiros do relógio sempre param antes do rio. Na estrada de plátanos podados as horas são medidas por cada folha amarela que encontra a terra úmida que parece um pouco com lama. É barro, nunca seca. Nunca cessa. Não dorme. É cinza e frágil apesar de dura. A música não chega até aqui, é sempre barulho de passos e vozes que não se reconhecem. Sons graves. Depois de amanhã vai ser dia de estar presente, já sem pele; ouvindo o estalar da brasa que queima por dentro do que já não serei, tentando curar o que sobrou. 

( Pai, me alcança um cobertor? )


quarta-feira, 4 de julho de 2012

Coisas que esquecemos



  E nesse dia realmente a cidade acordou mais feliz. Delicadeza em alguns pontos estratégicos, outros inesperados. Sorrisos de surpresa, admiração. Sorrisos por sorrisos. Essa manhã de inverno, com carinha de dia emburrado, teve seu encantamento diante do novo. Rendeu-se ao belo.

  Os passantes andaram com um pouco mais de calma. A pressa dos passos em cada calçada deu lugar aos olhares mais lentos e cuidadosos, procurando o diferente no meio da confusão urbana.

  As expressões bonitas. Sorrisos gratuitos, ações pequenas e de proporções imensas. Sem barulho ou grandes transformações. Sem alarde. Sem orçamentos absurdos. Sem publicidades .Uma única pretensão: Ver sorrir. 

  E não foi mais um dia comum na nossa não tão mais pacata cidade. Feliz de quem passou e viu. Feliz de quem pode admirar, e ver com o coração aberto. Feliz de quem tomou a iniciativa. Feliz de quem ainda consegue ver beleza na simplicidade. 

  Quem fez disse: Não esqueças de olhar o centro amanhã, detalhes que às vezes as pessoas esquecem.  Olhe as praças, paradas de ônibus, algumas vitrines, postes, portas. Olhe com olhos de ver além!

  " Coisas que esquecemos " é o nome do projeto.