Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Prá ti!!!


Reverência



 A menina que me sorri no sinal usa chapéu de arlequim, vestido de colombina e é feliz. Tem um sorriso largo, a pele pintada e a boca vermelha.

  Sorri em trocas de moedas, ou ganha moedas porque sorri. Imagino que sorri também quando não ganha moedas.

 Ela certamente tem um nome e uma história, abandona tudo e torna-se a menina do sinal.

  Ela salta leve entre os carros, saltita. Acho que ama alguém que a ama também, isso a faz feliz. Sorri em ângulos especias, sorri com os braços e com as pernas enquanto colhe moedas com seu chapéu colorido e, mal sabe ela que quem ganha somos nós.

  Será que ela mora em uma casa de porta amarela? Ou será que dorme em uma nuvem com forro de prata?
  Será que alguém já lhe pediu o nome? Será que alguma vez ela sente medo?

  Poderia ser professora do saber sorrir e saber emocionar os pobres mortais que param para ver sua graça simples, de arte de vida, que faz falta em todos aqueles carros apressados que passam e passam, só passam sem reparar que alguém os sorriu.

  Era só uma menina de chapéu colorido que me sorriu...



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O exercício de matar


   Hoje matei um homem.

  Matei de uma morte seca, sem dor, só a morte bastava. Preparei tudo em detalhes, cada movimento foi estudado, cada toque tinha o tempo certo. Não caberia arrependimentos.

  O primeiro olhar, o mais cruel, aquele em que os olhos ficam levemente apertados e as sobrancelhas arqueadas, um esboço de sorriso frio, olhar de anúncio da morte, ele é como uma carta de uma única palavra. Não existe dó nesse olhar.

  Sua existência assassinada com golpes exatos, até a morbidade crua se fez presente. O dia vestido de neblina foi jazigo, o  vento lhe serviria de lençol.

  Matei e olhei morrer. Uma morte de expurgo, simples e prazerosa como espremer uma espinha purulenta, que sangra pouco e purifica tua crueldade.

  Sem culpa esperei a última respiração, e os suspiros se confundiam, o meu de alívio, de prazer, quase um gozo vazio e o dele pesado e lento, frio, fechado cessou.

  Eu matei aquele homem porque precisava que a morte saísse de mim, não cabíamos mais, eu e ela, na mesma  casca.

   Matei pelo prazer de ver morrer o que me matava... Matei para não morrer...

( Pensei em enterrar o corpo, desisti. Achei melhor livrar-me dos velhos sapatos.)


Sarah Moon



Fotos como poesia interior, perto da introspecção... Preto e branco de dentro! 









quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Encontro


  A dor é um sentimento dobrado. Me apego a ela. É minha, não quero fingir que não sinto.

   É um expurgo, chega como um abraço, laços de arame farpado. Quero sangrar por hoje. Sentir o coração gelar, a fisionomia endurecer. Sem sorrisos.

  Quero sentar e conversar, ouvi-la, de voz fria, seca e dura.

  Deixe-nos à sós.

  Colocá-la em um altar, ajoelhar-me e venerá-la. É sagrada, de uma beleza rara. Sem lítio, sem amortecências, só sentir. Deixar sair.

   Tem dias assim, não é ruim, um sofrimento libertador. Dor que cura a alma, sem curativos. Uma ferida que seca aberta.

   Dói toda dor de mim, toda dor está em mim, e eu à respeito. Deixo doer e só. Quando ela passa e vai embora  o corpo dorme exausto e a lembrança macia da dor acorda sem sentir.

   Surge o sol e com ele  encontro meu corpo abandonado que já pode sorrir.
 
(   fica a sensação de olhar para o lado e ver um lugar vazio, o café frio... )




fetching








De pouco


Deveria ser o coração assim como um cesto
passa e colhe os afagos
o que puder de afetos
e todos os sorrisos
coloca algumas margaridas 
fica feliz se transbordar
assim entenderás 
que pode ser leve teu caminhar.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Olhos verdes




   Não se nasce pai, muitas vezes o filho nasce e o pai fica na incubadora, mas não vinga, é um desencontro. Dois estranhos e empatia não faz milagres.

   Meu pai  me ensinou ser mãe.

   Me ensinou também muito sobre a realidade dos distanciamentos, que nem sempre presença significa proximidade, e que a distancia é muito mais emocional do que física.

  Seria simples se a palavra pai não fosse tão carregada de simbolismos. E seria mais fácil ainda se os olhos fossem sempre da mesma cor e não mudassem se tem sol ou chuva, algumas vezes gelo. Talvez tudo esteja nos olhos. Talvez tudo falte aos meus olhos.

   Seria simples se fossemos simples.


     Eu pude escolher ser mãe. Enquanto filha, não tive essa escolha, o que não me torna menos falha.
  Eu preciso das integralidades.

  Talvez alguns pais não tenham escolhido seus títulos familiares. Talvez na hora da concepção, algum cromossomo paterno, vá para o filho, e no futuro esse cromossomo falte ao pai, lhe negando as características próprias.

  O mundo as vezes economiza estruturas labiais e as feições endurecem. 

  Por certo o filho reconheceria o pai, e o pai sorriria.

 Nada que nunca tenhas tido pode fazer falta realmente, então deve estar tudo no seu lugar certo. Cada um encenando seu papel. Cada cena com sua trilha sonora pré-determinada.

  Alguns textos jamais serão lidos por quem realmente os entenderia, e isso não faria a menor diferença.






domingo, 12 de fevereiro de 2012

Ceticismo


  Escolhi o melhor lugar na grama, embaixo da árvore de flores lindas, perfumadas e de um rosa tão suave que lembrava branco céu com sol.

  Acomodei-me e senti o livro, a capa, o autor, o cheiro e as primeiras páginas. Li sobre chuvas, cafés e o telefone tocou, sonoridade única o modo como pronuncias meu nome. E agora, o convite inesperado. Aceitei claro, juntei duas flores, coloquei entre a última página e a capa, precisaria ter algo especial, afinal ele coube no meu filme favorito, e agora também tu estavas nele.

  Um café com creme de avelãs e outro com sorvete, o contestável sabor do sorvete, enfim, naquela hora era doce. Sim a roupa não era apropriada, mas estar ali era mais importante que tudo, e sendo domingo era permitido um pouco de estranheza. Falamos dos nossos livros, o de capa azul que compramos igual e só um de nós leu.

  Falamos dos sabores daquela tarde, e hoje, terminando de ler o livro, encontro as flores nele, secas, lindas. O último capítulo deixou uma enorme sensação de inquietação, a mesma que senti quando ouvi o telefone tocar inesperadamente, a mesma inquietude que sinto quando lembro de todos os talvez.

  Hoje é domingo, ficou uma chamada perdida no telefone, só porque talvez é algo para sempre... ou talvez eu tenha dormido lendo e te sonhado.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Hoje



Quando não existirem palavras novas
basta uma margarida branca e um sorriso.
Encontrar o olhar e só sentir,
por instantes calar a música
deixar o mundo assim, pequeninho
de amarrar com fita e laço.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Também não sei


E mesmo que não encontremos palavras
temos o sentimento de um momento perfeito.
Talvez essas expressões mastigadas
sejam a expressão mais autêntica de algo verdadeiro.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Caminho



Passa devagar ao teu caminho hoje
Senta um pouco e espera
Espera e fica assim
Descansa

- Lembra quando foi primavera?
Ainda tem vestígios dela ai dentro
Respira
Sente
- Sentiu?
- Sim, senti. Mas foram tantas primaveras já que não sei de qual tu falas!
- Falo só das flores, de todas elas, nenhuma em especial.

( ele não podia lembrar agora, mas sentia... era bom ainda estar junto )

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Homem que Plantava Árvores

Sonho





Faz de conta


Faz de conta que é uma manhã de domingo e esquece a segunda.
Faz de conta que é dia de parque com carrossel, de cavalinho, daquele antigo, com direito a algodão doce. Faz de conta que é dia de chuva, esquece o calor.
Faz de conta que tem filme bom e nem liga para o noticiário.
Come  brigadeiro e faz de conta que ninguém vê.
Faz de conta que é água de fonte e toma no bico da garrafa.
Pega a pizza com a mão e faz de conta que está sozinho.
Canta, canta muito e faz de conta que o mundo é surdo.
Faz de conta que é dia de feira e sente o perfume dos morangos.
Faz de conta que a caneta é mágica e deixa ela dançar no papel, esquece a borracha.
Faz de conta que é praia e sai de chinelo, é a festa dos dedos.
Faz de conta que a bicicleta voa e busca estrelas.
No fim, faz de conta que nem é faz de conta...

Chá de tempo


Todo dia é sempre o mesmo dia.
O dia não é um novo dia, ele engana por causa do cheiro.
É um cheiro novo em um dia velho.
As manhãs e seus cafés fortes.
Os relógios e suas horas iguais.
O chuveiro e sua água de sempre.
Nunca vai ser amanhã.
Um tempo arrastado, meio avoado.
Nunca lembra de chegar, só quer ficar.
O sino badala igual.
As pessoas e sua pressas.
Os cigarros e sua fumaças.
Não tem graça.
O ônibus passa.
O tempo teme o próprio reflexo.
Por isso não passa.
É sempre só um dia que mente de novo...

Celebração da fé


 A fé individual é algo que não deveria ser discutido, pois acontece no interior, e as coisas de dentro são sagradas, como a própria fé. O intrigante é o que precisa ser explicado. Um santo para ser beatificado precisa prova de milagre. Milagre pode ser provado? Fé pode ser medida? Necessita  mesmo de validação?

  É como se  precisasse ser um acontecimento coletivo, não se pode crer sozinho. As igrejas lotam, os templos também, e o que acontece depois? Os olhares alheios parecem ser a própria manutenção da crença.


  Não discuto religião, não discordo e quanto muito concordo. Acho rituais religiosos lindos. Só não creio que possa realmente existir algo tão forte como a fé, em algum altar sagrado que não seja teu próprio coração. Tenho fé na crença de que o ser humano possa enxergar a verdadeira celebração diária da vida... E talvez eu só esteja absolutamente equivocada...





sábado, 4 de fevereiro de 2012

Intérprete


  Um idioma híbrido, mistura de duas línguas diferentes e um dialeto. Belo, doce como música, não há distância, só uma linha imaginária tênue. Palavras mornas, lentas, pronunciadas com cuidado, entre elas sempre respeito ao tempo que as sinceridades precisam. Nunca machucam, sagradas como um manuscrito antigo e raro. Únicas em seus significados e simplicidade. Não caberiam em nenhum dicionário. Livres, pertencem a uma classe de palavras que não se explica.
  Um dia " morangos" entraram na conta telefônica, e outras vezes quem troca tudo sou eu. No fim o beijo não precisa de traduções...

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A morte de Ana


Ana morreu.
De dor adoecida, de vida esquecida.
Foi uma morte simples, só morreu, sem mais explicações.
Sem complexidades.
Naquele momento, Ana era a morte de uma vida vazia, morte autêntica, sentia-se bela.
Uma palidez natural buscava o azul.
Era um passeio estar ali morta, uma pausa.
Ana sorria enquanto a morte esfriava.
Não chorou porque à esperava.
Não festejou porque à  respeitava.
Morte branca, leve, partida sem bagagens.
Era libertador não respirar, a tensão desaparecia da face.
Sem se despedir Ana morreu naquela tarde.

( e agora podia viver em paz )

Iguais



E no depois cabem as viagens
Os brigadeiros no dia 09
As férias ficam sempre para o inverno mais bonito
Os sonhos em preto e branco
A música no volume baixo
O passeio cabe em uma tarde feliz
A bicicleta sente falta
O vinho com queijo para os intervalos da insônia
O sabonete de castanha para as manhãs
O creme verde para os pés
A rotina não se entende
As margaridas sempre no vaso
Os cafés substituídos por chás
A água pura
Um pouco de outono caberia bem no verão
Uma praia com cheiro de chuva
Fevereiros são complexos, por falta de espaço são longos

( o bom do depois é colocar o passado nele, fica em tempo indefinido, quase uma inexistência )



Depois



(...) e eu nem saberia sentir, quanto menos explicar. É um estranhamento profundo, uma falta do sentir. Um perder sem saber o que procurar. O lápis não expressa, os olhos também não. A voz mente algumas palavras. O pulsar é fraco, quase inerte. É indiferente, frio e não é óbvio, fica recluso, é insistente. Pode ser apenas  algo querendo um libertar, como um abrir de gaiola... se isso for, logo pode ser mais leve...

Trocado


Não entender o pulsar e sentir
Ainda respira e não sente
Nunca é um dia inteiro
Sempre é  noite 
Ser vazio...

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Negações



Chorar
Cortar, rasgar, arrancar
machucar, arrastar, sangrar

Querer
entender, perder, nascer
crescer, fazer, morrer

Sentir
mentir, sorrir, desistir
sumir, fingir, resistir


Nunca chorar por querer não sentir...



Fechado



Um sentir sem expressão
costas brancas
relógio que não gira
mentira de horas emprestadas
areia nos olhos
vêm com o vento forte
antecede o pranto
demorado
finalmente chega
é leve
lava a dor e alivia
o chão de ladrilhos gélido
sem vida
queima
distração e o frio visceral te alcança
um tempo no espaço
onde ninguém sente...