Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

domingo, 26 de janeiro de 2014

Confesso que vivi - Memórias de Pablo Neruda


Quando terminei de ler suas memórias, acendi uma vela de gratidão, pela sua Poesia e, por seu Legado. Acho que Neruda ainda respira através de cada verso seu. É imortal;

Ele escreve:
A POESIA

QUANTA OBRA de arte... Já não cabem no mundo... É preciso pendurá-las fora das casas... Quanto livro... Quanto livrinho... Quem é capaz de os ler? Se fossem comestíveis... E se numa onde de grande apetite fizéssemos deles salada, se os picássemos e os enfileirássemos... Mas já não se pode mais... Já nos têm pelo cabresto... O mundo se afoga nessa maré...  Reverdy me dizia: "Avisei ao correio para que não me mandasse mais livros. Não podia abrí-los. Não tinha lugar. Trepavam pelos muros, temi uma catástrofe, despencariam sobre minha cabeça..." Todos conhecem Eliot... Antes de ser pintor... de dirigir teatro, de escrever luminosas críticas, lia meus versos... Eu me sentia lisonjeado... Ninguém os compreendia melhor... Até que um dia começou a me ler os seus, e eu, egoisticamente, corri protestando: " Não os leia, não os leia"... Me tranquei no banheiro, mas Eliot, através da porta, continuava lendo... Senti-me muito triste... O poeta Frazer, da Escócia, estava presente e me repreendeu: " Por que tratas Eliot assim?"... Respondi: " Não quero perder meu leitor. Eu o cultivei. Ele conhece até as rugas de minha poesia... Tem tanto talento... Pode fazer quadros... Pode escrever ensaios... Mas quero guardar esse leitor, conservá-lo, regá-lo como planta exótica... Tu me compreende Frazer"... Porque a verdade, se isso continua, os poetas publicarão somente para outros peotas...Cada um tirará seu livrinho e o meterá no bolso do outro... Quevedo o deixou um dia sobre o guardanapo de um rei... Isso, sim, valia a pena... Ou, em pleno sol, a poesia numa praça... Ou que os livros desgastem, se despedacem nos dedos da multidão humana... Mas a publicação do poeta para o poeta não me tenta, não me provoca, não me incita senão a me emboscar na natureza diante de um rochedo ou de uma onda, longe dos editoriais, do papel impresso.... A poesia perdeu seu vínculo com o distante leitor... É preciso recobrá-lo... É preciso caminhar na escuridão e se encontrar com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, dos que certa hora crepuscular ou em plena noite estrelada precisam nem que seja de um único verso... Esse encontro com o imprevisto vale pelo tanto que a gente andou, ou por tudo que a gente leu e aprendeu... É preciso perder-se entre os que não conhecemos para que subitamente recolham o que é nosso da rua, da areia, das folhas caídas mil anos no mesmo bosque... e tomem ternamente esse objeto que nós fizemos... Somente então seremos inteiramente poetas... Nesse objeto viverá a poesia...

E depois escreve:

É verdade que o mundo não se limpa das guerras, não se lava do sangue, não se corrige do ódio. É verdade.
Mas é igualmente verdade que nos aproximamos de uma evidência: os violentos se refletem no espelho do mundo, e seu rosto não é bonito nem para eles mesmos.
E continuo acreditando na possibilidade do Amor. Tenho a certeza do entendimento entre os seres humanos, logrado sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre os cristais quebrados. 





( E eu leio e leio e releio, e até me atrevo a colocar reticências nessa leitura... Durma bem Neruda. Durma bem. )



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Coloque uma margarida nessa pulseira, vou gostar.