Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

O atalho ao lado da igreja


E na cidade os ipês mais novos já brotam suas primeiras flores, logo não é mais frio, não terei mais desculpa para fechar a janela. Um atalho até a praça em frente a igreja, é lá onde nasce a lenda dos ipês, olhos verdes que me contou. Por que tenho que lembrar disso agora? Vi só uma sombra na porta antes, não era ninguém, pelo menos não era um alguém, sombras sempre passam por aqui,  não entram. Queria que o frio tivesse ficado, não existe no inverno uma obrigatoriedade em estar feliz o tempo inteiro, agora permite ser frio, dentro e fora. Não quero florescer, deixe a porta fechada e coloque a chave embaixo da pedra. Logo depois da ponte verás como as estações mudam muito rápido.




quarta-feira, 8 de agosto de 2012

É sempre partida


Não entendo se quem realmente parte é quem embarca. Fiquei na estação naquela manhã. Agora mesmo estando aqui, não me encontro. Não sei mais onde tomar café e nem acho os livros. Me perdi. Os botões da camisa nunca ficam em ordem e a estrada não chega até o destino. Algumas placas foram trocadas. Os lugares estão errados. Opostos. Não importa mais a quantidade de pessoas na fila; estou sem senha. Plataformas de embarque são singulares, solitárias e frias, independente da estação do ano. Nada floresce antes de partir; e nem depois. Quanto antes terminar o dia melhor. Existe muita coisa acumulada em não ter bagagens.


sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O mesmo dia



 Logo amanhece sábado, depois é dia em que não se vive, o tempo passa rápido até ele e para. Tentei me trancar para não o ver , ele entrou pela janela velha e me encontrou, tentei sair, fingir que não sabia que dia era;  há sempre algo que o identifique. É um dia marcado. Tem gosto de remédio sem água e cheiro de um mofo escuro, não sei como respirar. Mas ainda não é dezembro, preciso aprender uma maneira de fechar a janela direito, tenho que inventar outro calendário, tirar o relógio da parede, deixar a comida do cachorro pronta. Tenho que guardar os chinelos, desligar o telefone. Apagar a memória, cobrir os espelhos. Trocar a porta por outra sem vidros. Tenho que sair daqui.

( talvez  eu deva acordar cedo e levar as flores prometidas, é sempre bom pagar as promessas, mesmo que seja em um domingo, mesmo que ainda seja agosto, mesmo que não tenha gosto de nada.)



Os pés da noite e a coruja


O chá ficou esfriando na xícara, o aquecedor ligado não dá conta do frio que vem de dentro, nem o cobertor aqueceria essas horas. O dia ainda demora, a noite se estende como um tapete largo diante de meus pés descalços, se prestar bastante atenção acho que consigo ver as unhas crescendo, as minhas e as garras da noite também. Sempre acho suas marcas, as vezes no chão, outras vezes na carne dolorida. 

E mesmo que o tempo inteiro seja inverno morando aqui, amanhã não vou pela ponte, vou descer até o rio e atravessar por entre as pedras. Quando encontrar o ninho da coruja vou levá-la o mais longe que puder, onde ela possa piar em paz e eu dormir. No meio do dia com sol vejo os enormes pés da noite chegando, eles sentem-se donos do tapete, talvez o piso frio não lhe seja agradável; Acho que é hora de recolher os tapetes e abrir as velhas e empoeiradas cortinas.